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Opinião

Corpus Christi

23 de junho de 2011, quinta-feira, feriado nacional no Brasil. Dia de Corpus Christi. O que é isto? A tradução literal da expressão latina é "Corpo de Cristo". Refere-se a uma solenidade católica celebrada anualmente na primeira quinta-feira após o Domingo da Santíssima Trindade, para comemorar a eucaristia. A celebração do Corpus Christi acontece na igreja latina desde o século XIII. A primeira pessoa a pensar em uma festa especial para o sacramento eucarístico foi Santa Juliana (1193-1258), freira do convento agostiniano de Monte Cornillon, na Bélgica. Juliana compartilhou sua ideia com Robert de Thorete, então bispo de Liége, e com Jacques Pantaleón, que mais tarde seria o Papa Urbano IV. Como no regime católico de administração eclesiástica os bispos têm autoridade para ordenar a celebração de festas em suas dioceses, ele convocou um sínodo em 1246, e ordenou que a celebração acontecesse no ano seguinte. O bispo Robert morreu antes disto, mas a festa foi realizada assim mesmo. Em 1264 o Papa Urbano IV publicou a bula “Transiturus”, na qual ordenava a celebração da festa de Corpus Christi em todo o mundo (e não mais apenas na diocese de Liége). Aos poucos a festa passou a ser celebrada: Colônia (1306), Worms (1315), Strasburg (1316). Desde então, tem sido celebrada em todo o mundo católico .

A pergunta inevitável que surge é: se a festa se refere à instituição da eucaristia por Jesus na noite da quinta-feira que antecedeu sua crucificação (cf. Mt 26:17-30; Mc 14:17-26; Lc 22:7-20), por que é celebrada depois da Semana Santa? O argumento de Urbano IV na já citada “Transitorus” é que na Semana Santa os fiéis devem estar com suas mentes voltadas para a reflexão nos acontecimentos da Paixão propriamente, e por isso, podem acabar perdendo de vista a importância e o significado do evento da quinta-feira. Para evitar que tal acontecesse, a celebração da instituição da eucaristia por Jesus foi deslocada para um período posterior.

“Corpus Christi” é, portanto, uma tradição católica ocidental. O protestantismo e o cristianismo ortodoxo oriental não têm nada que seja similar. Mas a celebração desta festa faz pensar em algo importante, a celebração da eucaristia por Jesus e seu significado. Toda a cristandade tem no partir do pão e no beber do cálice seu ritual mais significativo. Todavia, ao mesmo tempo, muita discussão tem havido em torno do significado deste ritual, que é expressão de fé, e não meramente uma parte da liturgia. Afinal de contas, o que Jesus quis dizer quando afirmou "isto é meu corpo"? A tradição católica, trabalhando com categorias filosóficas tomadas de empréstimo da filosofia aristotélica, entende as palavras de Jesus em sentido literal. Ou seja, conforme o catolicismo, no momento da consagração dos elementos da ceia – o pão e o vinho – acontece uma mudança, não nos acidentes do elemento pão e do elemento vinho (cor, textura, sabor, odor), mas na “substância” destes, ainda que isto seja imperceptível aos sentidos humanos. A esta compreensão dá-se o nome de “transubstanciação”, que significa literalmente "mudar de substância".

A Reforma Protestante no século XVI apresentou compreensões diferentes. Lutero, que fora monge agostiniano, sempre teve a celebração da ceia do Senhor na mais alta conta. Ele divergia da compreensão católica tradicional, mas afirmava que, de alguma maneira, o próprio Jesus se faz presente no momento da ceia, “junto com”, “em com” “e sob” o pão e o vinho. A esta compreensão dá-se o nome de “consubstanciação”, que significa literalmente "com a substância". Na verdade, bem antes de Lutero houve quem entendesse a eucaristia em termos de consubstanciação. Mas o catolicismo tradicional rejeitou esta compreensão.

Zuínglio, contemporâneo de Lutero, iniciador do segmento protestante conhecido como "Reforma Reformada" (que teve mais tarde em João Calvino seu nome mais conhecido) divergiu das duas interpretações até agora citadas. Para Zuínglio as palavras de Jesus ditas por ocasião da última ceia devem ser entendidas de modo figurado, simbólico, e nunca de um modo literal. Portanto, para aquele reformador suíço, o pão e o vinho simplesmente simbolizam o corpo de Jesus morto na cruz e seu sangue derramado.
Carlos Jeremias Klein, pesquisador brasileiro e pastor da Igreja Presbiteriana Independente, em seu livro “Os sacramentos na tradição reformada” (São Paulo, Fonte Editorial, 2005), mostra como a maioria absoluta dos evangélicos no Brasil, pentecostais e não pentecostais, entende a ceia de maneira apenas simbólica.

O já citado João Calvino contribuiu para o debate com outra perspectiva. Para Calvino, no momento da eucaristia Jesus se faz presente de maneira real, não nos elementos em si, mas no coração dos fiéis. Esta é a “presença real” de Jesus na ceia. A compreensão de Calvino talvez seja uma via média entre a compreensão de Lutero e de Zuínglio. No entanto, é desconhecida da maioria dos membros, e mesmo pastores, de igrejas de tradição calvinista propriamente.

Ninguém pode negar a importância da ceia. Ninguém pode negar a importância desta celebração na caminhada cristã. Ninguém pode negar a presença de Jesus Cristo na vida dos que crêem. Não como um ritual mágico, para garantir sorte ou prosperidade. Mas como um momento de renovação de forças para continuar na jornada da fé, do amor e da esperança, no seguimento daquele que se deu por nós, para nossa salvação.

-- As informações históricas foram extraídas do verbete "Feast of Corpus Christi" da "The Catholic Encyclopedia".


É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
  • Textos publicados: 83 [ver]

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